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Jards Macalé e seus 76 anos de provocações musicais

03.04.19 - 14H42
Penumbra do cantor Jards Macalé em foto de capa do seu novo disco.

A partir desta quarta-feira (03), sempre às 20h, o programa Vozes do Brasil passa a ser transmitido, na programação da rádio publica do Recife, apresentando a cada dia uma hora de entrevistas, músicas e performances com artistas das novas gerações e nomes já consagrados da música brasileira. Produzido e apresentado pela jornalista Patrícia Palumbo, o programa desta quarta trará uma entrevista exclusiva com o cantor e compositor Jards Macalé, sobre seu novo trabalho fonográfico: "Besta Fera".

Segundo ele mesmo conta na entrevista para Patrícia Palumbo: "É um disco 'trevoso' para um tempo 'trevoso', refletindo não apenas o Brasil, mas o próprio mundo e como toda a situação está esquisita". Resolveu abrir o novo disco colocando, após 50 anos de sua polêmica canção "Gotham City", mais um morcego na parada, como se numa tentativa de criar uma labareda contestadora para varrer e inflar a juventude: "Vampiro de Copacabana", música composta em parceria com Kiko Dinucci. "É um jeito externo de olhar, onde eu mostro a realidade do que é Copacabana, longe daquele lugar idealizado de sempre. Uma Copacabana cheia de turistas, gente estranha, prostitutas, brigas, roubos e ao mesmo tempo sua beleza, porque Copacabana é uma beleza total!", exclama Macal.

O disco traz outras criações com músicos das novas gerações, como a parceria com o cantor Tim Bernardes, da banda O Terno, na canção "Buraco da Consolação", uma verdadeira ode à Lupicínio Rodrigues, influência declarada dos dois, com um arranjo prestando nítida homenagem à lendária Orquestra Tabajara, comandada pelo grande maestro Severino Araújo.

Pra dar um gostinho do que vem aí nessa entrevista, Douglas Tenório* preparou esse perfil do artista brasileiro. Confira:

Navegando nos trópicos da subversão

"que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente"

           - João Cabral de Melo Neto, 1955.

 

É curioso pensar que um rapaz de bons modos e aparência comportada tenha feito tanto barulho em sua época e se tornado um caso sui generis de rebeldia e inconformidade no cenário da música brasileira. Jards Macalé começou a carreira artística discretamente, acompanhando ao violão uma iniciante Maria Bethânia, recém-chegada da Bahia, e aos poucos foi fazendo seu nome no incipiente show-business brasileiro que avançava com força nos turbulentos anos 60.

Foi em 1969 que Macalé caiu de cabeça na zorra da contracultura e fez um morcego diferente pousar nos trópicos. Era a época dos festivais musicais. A partir dos anos 70, as novelas começaram a fazer a cabeça dos brasileiros, porém, até 1972, mais ou menos, eram os festivais que dominavam a TV e se igualavam até às partidas de futebol, com um público à flor da pele. Cada artista e canção tendo uma torcida própria em seu favor para ovacioná-lo ou uma torcida que o vaiaria ensurdecedoramente, algumas vezes até impedindo a execução da respectiva música, como aconteceu com o cantor Sérgio Ricardo, em 1967, que foi "agraciado" com tantas vaias que não conseguia sequer ouvir o que tocava e, no fim, indignado, quebrou violentamente seu violão no palco e o jogou contra o público.

Apresentação de Jards Macalé no FIC, 1969
Apresentação de Jards Macalé no FIC, 1969

 

 Foi nesse contexto que Jards Macalé surgiu. E foi no FIC, o Festival Internacional da Canção, do ano de 1969, em pleno Maracanãzinho lotado, com a música "Gotham City", que Macal realizou sua estreia ao grande público jovem brasileiro e aos meios de comunicação de massa. Parceria sua com o poeta Capinan, "Gotham City"  tem letra escancaradamente inspirada nos quadrinhos americanos do Batman, já exibindo sua faceta escrachada de ser. Trajando uma túnica multicolorida, cantou acompanhado com um dos conjuntos mais psicodélicos da época, Os Brazões, que já tinham história com Gal Costa e Tom Zé, fazendo jus à grande orquestra que os acompanhava, onde as partituras estavam em branco, apenas com os dizeres: "toquem o que quiserem". Cacofonia sem limites!

Na virada dos anos 60 pros 70, o mundo muda e o próprio Macalé muda junto com ele. Era o tempo de "descer por todas as ruas, de calça vermelha, casaco de general, cheio de anéis...". Desbunde total. Caiu nas graças de cantoras como Gal Costa e Maria Bethânia e virou um de seus principais compositores. "Vapor Barato", "Movimento dos Barcos", "Mal Secreto", entre tantas outras se tornaram clássicos do cancioneiro hippie nacional e hoje já são parte da própria música popular. Foi quase que intimado por Caetano Veloso a ir a Londres durante o seu exílio para dirigir musicalmente e produzir o cultuado disco "Transa", de 1972, e depois disso não parou mais tendo, por exemplo, incursionado no cinema com parcerias do calibre de visionários como Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos. Inquieto, caía de cabeça no que surgisse em sua mira. "Eu não preciso de muito dinheiro... Graças a Deus!".

Mesmo tendo sido criado na base de Noel Rosa e Ary Barroso, fazer algo simples e de fácil assimilação com o público de massa nunca foi seu desejo, sua arte se realizava sempre indo na contra-mão de todos os modismos que se tornavam pauta. Sempre se opôs ao que o filósofo Theodor W. Adorno gostava de nomear como a "bárbarie da perfeição". Sua razão de arte e de ser sempre será "desafinar o coro dos contentes", como escreveu um de seus parceiros, o poeta Torquato Neto, satirizando sem dó outro grande poeta, Carlos Drummond de Andrade, e pondo em voga sua estética seca e de canto torto, quase como um Belchior querendo "que esse canto torto feito faca corte a carne de vocês". Ou até mesmo quem sabe, um João Cabral de Melo Neto com suas tantas lâminas e serventia das ideias fixas, o que Jards Macalé sempre buscou foi incomodar, não passar despercebido e embebido dos batuques sincopados de Naná Vasconcelos, de discursos inflamados de Fidel Castro, das estéticas de puro vanguardismo de Hélio Oiticica, não há como negar: Jards Macalé desferiu belos golpes em muitos desavisados, porquê não tem jeito de passar incólume por sua obra.

 

Jards Macalé durante show nos anos 80
Jards Macalé durante show nos anos 80

 

Jards Macalé completou recentemente 76 anos e poderia, como outros de sua geração, estagnar e acompanhar o dobrar dos sinos das épocas, sendo só mais um espectador, "um criminoso vivendo seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade", como já disse Guimarães Rosa em seu "Grande Sertão: Veredas". Mas Macalé prefere mesmo é gritar, urrar à seu modo, como na terapia do grito primal do psicanalista Arthur Janov, mandar tudo pro inferno e expurgar seus demônios, expondo que sempre há um novo coro de contentes para ser desafinado.

*Douglas Tenório é estudante do 7º período de Jornalismo.


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