Reprodução/Internet
Por Johnny de Sousa
Novembro chegou e, junto com ele, vem a importância do reconhecimento da luta e da história do povo negro. Consciência consta no dicionário como a percepção histórica e contemporânea da realidade de um indivíduo, sendo esta uma evocação básica para rejeitar qualquer tipo de indiferença ou ataque à cultura dessas pessoas. A necessidade de um mês para a consciência negra não se dá por um sentimento simples de exclusividade, visto que a hegemonia branca e a violência contra povos originários, principalmente os africanos, não se dá, na história do mundo, como mera coincidência.
Como um homem branco, cabe a mim fortalecer as instituições que trabalham a favor da luta contra o racismo, isso se dando, de uma forma um tanto infeliz, pelo meu espaço de reconhecimento na sociedade. Não se escutam tanto pessoas pretas em relação às brancas, sendo necessária uma colaboração interracial para que seja dada uma virada drástica nessa estrutura racista. Dessa forma, a luta não deve ser capitalizada e muito menos usada para esbanjar o orgulho branco das grandes empresas. O que deve ser feito é apoiar a iniciativa em plena liberdade popular, tornando os privilégios instrumentos de um movimento antirracista.
Dentro dessas iniciativas, encontramos o projeto Oxé, uma iniciativa conjunta que trabalha frente ao acolhimento de mulheres que sofreram e sofrem violência racial. Mirando essas instituições, podemos aprender muito com suas estratégias, visto que logo se tornam exemplos de uma batalha tão necessária. Para falar um tanto dessas estratégias e funções, Priscila Xavier, apresentadora do TPM - Tempo Pra Mim, conversou com a psicóloga, atuante no projeto Oxé, Maria Luiza dos Santos, a cientista social e coordenadora do GAJOP, Edna Jatobá, e a advogada, assim como gestora do projeto Oxé, Priscilla Rocha. Para além do projeto, essas três mulheres ainda se entregam, mesmo que de forma separada, ao propósito antirracista, dentro de seus respectivos trabalhos.
Priscila Xavier: “Como que o racismo atravessa as mulheres e acaba afetando esse autocuidado?” foi uma pergunta que eu me fiz uma vez, e quando vi que existia esse projeto, achei que seria muito legal trazer esse conhecimento pro nosso debate. Diante da importância desse tema, o TPM trouxe essas três mulheres que representam as organizações integrantes do Projeto Oxé: a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP) e a Articulação Negra de Pernambuco (ANEPE). Falem um pouco desses projetos, meninas.
Maria Luiza dos Santos: Eu estou aqui como membra da Rede de Mulheres Negras e psicóloga do Projeto Oxé. A Rede tem sonhado sobre esse projeto desde 2016, e é com muita alegria que a gente conseguiu se unir ao GAJOP e à ANEPE para integrar essa frente de luta contra o racismo, até porque somos essa referência dentro da questão do autocuidado. Tem mulheres incríveis trabalhando dentro desse projeto, que considero como grandes influências minhas, além de serem extremamente presentes dentro da causa. Quando eu entrei na Rede, foi um momento que modificou meu olhar como mulher negra, já que é um lugar de grande fortalecimento e que, orgulhosamente, me afirmo não só como membra, mas como cria.
Nesta pausa entre falas, Priscila aproveita para parabenizar a união dessas instituições assim como os seus trabalhos, que são dados como referência em todo o estado. É necessário que instituições governamentais abracem causas sociais em conjuntura à sociedade civil, visto que, dessa forma, podem demonstrar um interesse pelo bem estar social. Em seguida, a palavra foi passada para Edna Jatobá.
Edna Jatobá: Bem, o GAJOP é uma organização da sociedade civil que vem se tornando, cada vez mais, anti racista. Dificilmente, organizações antigas como a nossa nascem já com esse propósito, é um processo muito forte, de muita mudança e reconhecimento, para que a expertise do projeto venha aderir a essa causa. Felizmente, estamos conseguindo cada vez mais e trabalhando com outras instituições dentro desse meio. Fazemos o monitoramento das estatísticas de violência em Pernambuco, através de redes observatórias como a Fogo Cruzado, e prestamos assessoria jurídica popular. Foi através desses serviços que conseguimos chamar a atenção da Rede e da ANEPE, assim sendo convidados a participar do projeto Oxé. Já trabalhávamos ao lado da ANEPE há um tempo, dentro de situações extremamente difíceis de enfrentamento rigoroso ao racismo. Fico feliz de, então, estar trabalhando dentro de um projeto propositalmente tão feliz.
Print da entrevista que também foi veiculada no YouTube da emissora. Da esquerda para a direita: Priscilla Rocha, Edna Jatobá, Maria Luiza Santos e Priscila Xavier. (Reprodução/YouTube)
Priscilla Rocha: Eu venho representando a ANEPE, uma articulação que reúne mais de 30 organizações e coletivos, trabalhando em prol da defesa antirracista. São associações majoritariamente negras, que trabalham juntas na preservação da negritude aqui em Pernambuco. Atuamos a nível nacional com a Coalizão Negra por Direitos, combatendo o racismo estrutural, institucional e, também, a violência inferida contra corpos negros. Com essa perspectiva ampla, fazemos intervenções junto com movimentos sociais, meios jurídicos, âmbito político, audiências públicas… Então, a temática ampla é a defesa da população negra, priorizando o apoio à essas diversas organizações que atuam dentro do estado.
Priscila Xavier: Já deu pra ver a potência dessa mesa, né minha gente? Agora que já estamos apresentadas, queria voltar à pergunta original. De acordo com a vivência de cada uma aqui, como o racismo, em sua diversas formas, interfere no nosso autocuidado? Eu sempre costumo trazer alguma reflexão, seja ela mais política ou espiritual, para que os ouvintes possam acompanhar a gente de forma mais aprofundada nas temáticas do programa. Queria que vocês falassem, então, sobre a interferência do racismo no autocuidado e como o projeto pode ser uma ferramenta para essa luta.
Priscilla Rocha: Acho que já posso começar dizendo que o racismo nos fez pensar que não há cuidados para o nosso corpo. Nossa existência, como negros e negras, sempre se voltou para o cuidado de outras pessoas, nos colocando em segundo lugar. Poder fazer parte de um projeto que conversa com pessoas que necessitam de proteção e poder falar sobre isso de igual para igual é muito bonito, pois é um senso de união muito forte. Preciso entender que necessito de descanso e que, também, posso me permitir ser frágil. Entrando em contato com irmãos e irmãs que compreendem minha dor eu pude entender que não sou apenas corpo de trabalho, que eu tenho que lutar por um direito à vida plena. Através de uma rede de apoio, com minhas companheiras de trabalho, além de uma psicóloga que me ajuda, eu pude me compreender com mais seriedade, sendo isso um processo muito importante pra mim.
Maria Luiza: E que processo, né Priscilla? Pois eu vejo que o racismo atravessa o autocuidado de uma forma enorme. Ele opera de forma que tira a autoestima da gente, não só na questão física, mas também intelectual e dentro dos nossos relacionamentos. Está nesses espaços, de luta anti racista, é muito fortalecedor, ao mesmo tempo que é bastante trabalhoso. Estamos em constante vigilância, testemunhando muitas dores e trabalhando em cima disso, sendo o desprendimento desse mecanismo algo muito difícil. A travessia do racismo em alguém é algo muito cruel, pois a pessoa sofredora dessa situação não consegue compreender o que lhe aconteceu, muito menos falar sobre o episódio. Muitas pessoas que entram no Oxé não reconhecem que sofreram racismo, cabendo a nós do comitê, introduzi-las dentro do tema aos poucos. Posso estar falando o óbvio para alguns, mas vivemos num país extremamente racista que não acredita ser assim. Nos colocamos em dúvida se, de fato, o que sofremos foi um ato racista, pois não nos é ensinado como entender esse tipo de crime.
Edna: Aproveito a deixa de Maria Luiza para trazer um pouco das vivências do projeto. Acompanhamos casos de violência e letalidade policial, onde não só tratamos das pessoas que morreram na mão da polícia, mas também de toda a marca que essa brutalidade deixou nas famílias e das pessoas próximas que ficaram. Essas pessoas são vítimas, pois são mães que se culpam por não terem conseguido salvar um filho da morte, são familiares devastados e separados por conta de atos violentos. São pessoas brutalmente atravessadas por um ato cruel, que se estende até o momento em que quem não sofre diretamente também acaba se culpando por algo que não fez. Essa é a crueldade do racismo, ele tira o foco da luta e culpabiliza até quem é vítima.
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Diante desses testemunhos, proponho que tenhamos todos uma reflexão sobre o estado do país diante de tantos casos brutais de violência e desonra aos corpos pretos e não brancos. O mito de que a miscigenação bloqueia a violência racial é que tira a população do foco necessário, que são as constantes desculpas do Estado para intervirem sobre as vidas negras. A normalização de um discurso de ódio tem crescido em diversas regiões do país, caindo em cima de diversas minorias, não coincidentemente, majoritariamente preta e pobre. Apoie causas necessárias, principalmente as que são construídas por ações populares. Todos temos um papel essencial na luta antirracista.
Ficou a fim de escutar a entrevista na íntegra? Clica aqui pra conferir. Lembrando que o #TBT101 é uma coluna em que, toda quinta-feira, vamos relembrar entrevistas e programas massas e importantes que já rolaram na programação da rádio pública do Recife.
Todas as entrevistas ficam disponíveis na sua plataforma de streaming favorita (Spotify, Deezer, Castbox, Google Podcasts, Anchor ou Mixcloud.)
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