
As Ganhadeiras de Itapuã. (Foto: Leto Carvalho)
Por Mateus Paegle
No ano de 2004, um conjunto de mulheres negras do bairro de Itapuã, em Salvador, se uniu pela vontade coletiva de trazer à memória e resgatar as raízes, tradições histórico-culturais e ancestralidade das mulheres negras brasileiras ligadas ao sistema comercial de ganho durante o período colonial brasileiro. A partir desse empenho, nasce, em forma de música, dança, teatro e elementos culturais tradicionais, o grupo de Samba de Roda “As Ganhadeiras de Itapuã”.
Em atividade desde 2004, o grupo traz dança, teatro, cirandas, canções praieiras e cantigas, fruto do coro de 20 vozes femininas. Tendo lançado seu primeiro CD em 2014, as Ganhadeiras de Itapuã venceram o 26º Prêmio da Música Brasileira de 2015, nas categorias de Melhor Grupo Regional e Melhor Álbum de Música Regional. Além disso, as artistas ainda colecionam o troféu de melhor produção na categoria Show do Prêmio Caymmi de Música, também em 2015, e foram convidadas de honra da apresentação de encerramento das Olimpíadas 2016, no Rio de Janeiro.
É buscando homenagear o Samba de Coco, o trabalho coletivo de resgate ancestral através da música e da dança e o legado histórico-cultural das mulheres negras do ganho, que o #TBT101 desta semana relembra a entrevista de integrantes do grupo “As Ganhadeiras de Itapuã” para Gabriele Alves no nosso BR-101.5. Entre as componentes, estiveram na conversa a condutora e diretora de patrimônio do grupo, Verônica Raquel, a vice-presidente Terêsa Conceição, a sambadeira Vitória Isabelle e a cantora Maria Lúcia, que levaram aos ouvintes da Frei Caneca FM diálogos sobre a história das Ganhadeiras de Itapuã, sobre a importância da preservação da ancestralidade através do fazer cultural, assim como das raízes que unem sua arte ao trabalho das mulheres negras ligadas ao sistema de ganho durante o período colonial no Brasil.
A entrevista foi transmitida nas ondas da 101.5 em 17 de janeiro de 2025. Confira um trecho:
Gabriele: Como no início da entrevista tivemos aqui uma reza inicial, eu fiquei pensando que a religião é justamente um lugar em que a gente consegue encontrar união, em que a gente consegue olhar um no olho do outro e perceber que estamos num mesmo lugar, que no fundo somos todos irmãos e as Ganhadeiras vêm também nesse sentido de recuperar essa nossa união, essa nossa unidade, não é?
Verônica: Pois é, eu fico muito emocionada todas as vezes que minha tia (Maria Lúcia) canta “Ave Maria” e quando ela consegue atingir os agudos todos, dá um orgulho (risos) em saber que eu faço parte dessa linhagem, sabe? Isso também está atrelado às Ganhadeiras, essa coisa da linhagem, né? Então quem são as Ganhadeiras de Itapuã? As Ganhadeiras de Itapuã são as mulheres que fazem parte dessa linhagem, da linhagem das mulheres do ganho, as mulheres africanas do ganho que são arrancadas do nosso território matriz, do nosso território mãe e são jogadas aqui nesse território hoje chamado de Brasil. Então essas mulheres vêm de lá já com todo esse tino para o comércio, porque lá elas já trabalhavam assim e elas são trazidas. E é importante a gente destacar uma coisa, porque a gente costuma falar que foi assim à toa, que o nosso povo foi arrancado de lá à toa, “ah não, pegou ali, achou bonito e trouxe”. Não foi assim, tinha-se um foco, tinha-se uma meta, né? Então as mulheres do ganho elas são trazidas para cá especificamente para enriquecer mais os senhores de engenho.
Como eles sabiam que elas tinham tino para o comércio, eles trazem elas justamente para isso, para trabalhar nos comércios deles e enriquecê-los ainda mais. Porém essas mulheres, as mulheres que estavam na liderança do comércio, elas também sabiam como dar a volta neles bonito, e aí o que é que elas faziam? Elas superfaturavam os valores do produto que era determinados para elas venderem, guardavam esse dinheiro e iam juntando para comprar sua própria alforria, não apenas a alforria delas, mas também de outras e irmãs e de muitos homens também. Então as ganhadeiras elas foram as primeiras poupadeiras da história, as primeiras economistas da história e nós ascendemos dessas mulheres, porque quando elas chegam aqui no Brasil elas são disseminadas para várias partes desse território e um dos lugares foi Salvador, elas chegam em Itapuã. Então nós, Ganhadeiras de Itapuã, somos descendentes dessas mulheres através da pesca, através da lavagem de roupa no Abaeté e em outras fontes também, porque o Abaeté ela não é apenas uma lagoa, ela é um conjunto de flora, fauna e de outras lagoas também, de fontes.
Itapuã é um lugar banhado literalmente por águas doces e salgadas, é um lugar abençoado, se vocês não conhecem vão conhecer, porque vale muito a pena. Então eu ressalto sempre que essas mulheres do ganho são as mulheres de Exú, que é o dono do comércio, Laroyê é o dono do comércio, é quem comanda o comércio e de Iansã, que era a orixá que ensinou para essas mulheres o ganho par que elas pudessem ser autônomas, para que elas tivessem autonomia, serem donas do seu próprio tempo e sustentarem suas famílias (...) Então as Ganhadeiras de Itapuã reproduzem isso e hoje fortalecem e sustentam esse legado das mulheres africanas do ganho.
Gabriele: Quando você fala de Oiá, eu me lembro logo das baianas com seu Acarajé, tendo seu sustento (...) O Acarajé é a comida de Oiá dentro do terreiro, não é? (...) Então eu queria falar com essa baiana do Acarajé aqui, porque é uma coisa que vai passando de geração em geração, você aprendeu com as mais velhas, não é?
Vitória: Isso, eu venho dessa linhagem. Minha bisavó foi baiana, minha vó foi baiana, passou para as filhas dela e minha mãe passou para mim. Hoje em dia minha mãe trabalha nesse ramo do Acarajé e eu fico ali lado a lado com ela, seguindo, olhando, observando e aprendendo cada vez mais.
Gabriele: E estar dentro das Ganhadeiras de Itapuã, participando, aprendendo com a sabedoria das mais velhas num grupo que é tão diverso, como é que é essa experiência?
Vitória: É uma experiência incrível, porque cada dia é uma história nova, cada dia aprendemos coisas novas, que não imaginávamos aprender. É um legado que vamos levando.
Gabriele: Vou voltar para o comecinho da entrevista em que a gente celebrou esse encontro, a conexão entre Pernambuco e Bahia, que têm essa cultura de chão, a cultura popular que é feita aqui e que é feita lá. Como que a gente pode fazer esses links entre o Pelourinho e Olinda, na Cidade Alta? Como a gente pode fazer esse paralelo entre As Ganhadeiras de Itapuã e os Sambas de Coco de Amaro Branco, que a gente localiza de onde vem essa cultura e quando a gente mantém viva a através da cultura a história de um bairro, isso fica mais forte ainda e até se expande para além do nosso bairro não é? Além da auto estima do povo que tá morando ali, vai levando a cultura além, né isso?
Verônica: As Ganhadeiras elas levam o nome de Itapuã hoje até para além do que os outros artistas consagrados levaram, modéstia a parte, né? (risos) A gente precisa dar o valor devido. Sem falar que quem está levando é quem de fato é nativo, quem vivencia o cotidiano do lugar e quando a gente pode levar através da arte… embora que, assim, a gente não pode romantizar a história do ganho, a gente não pode romantizar a história das escravizadas aqui do ganho, porque embora elas tivessem essa astúcia, que é algo belo, esse jogo de cintura para lidar com tudo, principalmente com o dinheiro. Até porque a gente sabe que a energia do dinheiro, para o nosso povo, foi deturpada e a gente não consegue lidar com isso. Então, assim, quando você consegue lidar de uma forma maestral com o dinheiro, nossa, isso é de uma beleza, né? Então tem essa arte, porque as Ganhadeiras mesmo no labor, difícil e árduo, tinha ali uma arte. Porque a arte ela vinha justamente para que essas mulheres conseguissem lidar com esse tipo de trabalho.
Quando minhas tias e minhas parentes mais velhas falavam como era a forma de lavagem, a forma do trabalho de costura, de bordado, como eram feitos os quitutes e como tudo isso não era valorizado, eu digo: poxa, só um bom samba de roda, só as cantigas, só essa crença de que para além daquilo há algo muito maior, que é a regência dos encantados e das encantadas do lugar, que é a força dessa ancestralidade que nos sustenta, que fala “não vai sucumbir, não vai desistir, a gente precisa resistir, porque quem está vindo aí precisa desse legado forte”.
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Confira essa entrevista na íntegra através do nosso canal no YouTube. Toda quinta-feira publicamos a coluna #TBT101, onde o ouvinte relembra entrevistas importantes que a 101.5 trouxe na grade de programação.
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