(Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF)
Por Luiz Rodolfo Libonati
“O Brasil não aceita mais um ministro conservador. É hora de fazer História!”. Assim pontuam em campanha as mais de vinte organizações não-governamentais responsáveis pelo abaixo-assinado que tem defendido a introdução de uma ministra negra à corte do Supremo Tribunal Federal (STF). O movimento não poderia ter maior pertinência: caso o objetivo seja alcançado, será a primeira vez, em 132 anos de história do STF, que uma mulher jurista preta e sensível à nossa diversidade demográfica ocupará a cadeira no sistema de justiça do país.
O significado dessa conquista seria maior do que é possível expressar em palavras. Há cinco séculos, em 1535, foi iniciado o nosso violento regime escravocrata que, abolido no papel em 1888, nunca de fato nos abandonou em sua desumanização e cuja herança de profunda desigualdade socioeconômica, étnico-racial, de gênero e religiosa se estende até o atual dia. Inclui-se aí, inevitavelmente, a desigualdade jurídica, cujo oposto ideal deveria assegurar, em prática, o princípio constitucional da igualdade. Em realidade, mero sonho. Consequência disso, segundo dado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é 68,2% da população carcerária serem compostos de pessoas negras, um dentre infinitos casos de disparidade social explícita.
Ao longo da passagem de 171 ministros pelo STF, escapou à informal, mas concreta norma masculina branca, na corte, o total de seis nomes, sendo estes três juristas homes negros e três juristas mulheres brancas. No debate a partir desse contexto, veículos midiáticos independentes e sociedade civil têm mencionado nomes que iriam na contra-maré, a exemplo das juristas Adriana Alves dos Santos, Lívia Sant’Anna Vaz, Soraia da Rosa Mendes e Antonella Torres Galindo.
Para discutir o impacto de tal formação étnico-racial e de gênero sobre a longa trajetória do sistema de justiça e poder no Brasil, o apresentador Alex Carvalho recebeu Denyse Mendes, jurista negra integrante do coletivo Abayomi Juristas Negras. Abaixo você acompanha um trecho
Alex Carvalho: Neste momento, a corte são onze ministros que vêm de carreira, foram juízes, promotores. Temos hoje nove homens e duas mulheres na corte, todos brancos, e a Rosa Weber vai se aposentar agora em outubro. Vai abrir uma vaga. E por que é que a gente, como sociedade, precisa de uma mulher negra ocupando essa vaga, Denyse?
Denyse Mendes: Eu acho interessante e muito necessária essa pergunta, e gosto muito de responder, porque, enquanto mulher negra, jurista negra dentro desse sistema de justiça, a gente vê a necessidade de se incluir, de se convocar uma mulher negra para o STF, dada toda a construção social que o Brasil tem. A mulher negra está na base da pirâmide social e toda a construção dessa pirâmide social, na estrutura do país, passa pela mulher negra. Então, todas as movimentações de mulheres negras, de projetos sociais, da coletividade, enquanto mulher negra, movimenta toda essa estrutura.
A necessidade da indicação de uma mulher negra para o STF, para além da representatividade que a gente, enquanto mulher negra, enquanto jurista, vai ter nesse sistema, justamente porque não tem essa visão de mulheres pretas dentro do sistema, é para que a justiça se torne mais justa. Por essa visão da mulher negra num meio social, para que a gente possa efetivamente, na prática, ter uma justiça social que perceba os problemas estruturais dentro deste país, como é o caso, por exemplo, da desigualdade social, de julgamentos muito pertinentes e necessários com a questão racial dentro do sistema da justiça. Então, é necessário a nomeação de uma mulher negra para esse sistema, para que a gente possa fazer um movimento contra-colonial do que a gente já vem, desde os tempos imemoriais do período escravocrata, recebendo até hoje dentro do sistema de justiça.
Veja, a gente é maioria na sociedade, 56,1% de pessoas pretas como um todo, mas essa grande maioria não está representada nesses sistemas de poder e de saber. Por que isso? Por que essa estrutura permanece privilegiando um grupo e discriminando, marginalizando outra população? A gente é maioria dentro de um sistema carcerário, mas não é maioria dentro de uma empresa, por exemplo, que possa ter tomadas de decisões que visem às pessoas pretas, pardas dentro de um sistema.
Alex Carvalho: É interessante você falar isso, porque na história do STF, desde a redemocratização, a gente só teve um ministro negro, o Joaquim Barbosa, que foi indicado pelo Lula em 2003, e três mulheres. De trinta indicações, apenas três foram mulheres: a Ellen Gracie, que foi a primeira, no governo de Fernando Henrique Cardoso; a Cármen Lúcia, que foi o Lula quem indicou; e a Rosa Weber, que vai se aposentar agora e que foi a Dilma Rousseff quem indicou. E é muito desproporcional, se a gente ver que as outras vinte e seis indicações são sempre homens brancos.
Denyse Mendes: É o que a gente chama do pacto da branquitude. Essa permanência, conscientemente ou inconscientemente. E é por isso que a gente vê tantas decisões, dentro do sistema de justiça, que privilegiam alguns em detrimento de outros, e esse outro é uma população marginalizada e é o que a gente chama de uma minoria maiorizada, porque a gente é maioria, mas, infelizmente, somos minoria dentro desse sistema de poder e de saber.
Em nosso atual cenário sociopolítico, a conquista da nomeação de uma jurista negra para compor o Supremo Tribunal Federal não só daria sequência ao recente sentimento de respiro livre da população brasileira, trazido pela eleição de um governo federal democrático e defensor dos Direitos Humanos.
Mais do que isso, tal avanço significaria um passo histórico, aguardado há muitas décadas, em direção a uma transformação política profunda, que reformule as estruturas de nossa sociedade e cure mazelas que não mais nos cabem, decidindo pelas devidas justiça, cidadania e democracia que nos são de direito.
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Ficou a fim de escutar a entrevista na íntegra? Clica aqui pra conferir. Lembrando que o #TBT101 é uma coluna em que, toda quinta-feira, vamos relembrar entrevistas e programas massas e importantes que já rolaram na programação da rádio pública do Recife.
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