Por Johnny de Sousa
No último domingo do mês de Julho, o poeta Miró da Muribeca encantou-se. Saiu desse plano para um mais merecido, um que lhe permitisse ser mais inteiro e descansar em paz. Não viveria mais a violência dos seus versos mais tristes, porém flutuaria sobre a intensidade das suas estrofes mais amorosas. Miró era o resultado das ruas e do cotidiano do Recife, mas, acima de tudo, era o maior representante de uma poesia celestial, dentro dessa grande metrópole. No final das contas, ele era a própria literatura.
A Frei Caneca FM homenageia o legado de Miró através da memória, resgatando, em formato do nosso TBT, o dia em que o mesmo foi homenageado por Janaína Serra, no programa Relicário.
Por ser o maior representante da lírica recifense, a comemoração do Dia da Poesia foi dedicada totalmente a Miró, na época ainda se tratando da doença que o acometia. Felizmente, nos restou memórias, depoimentos de pessoas importantes e uma fala do próprio Miró, para integrar a programação.
“O amor, quando invade, arde bem dentro! Risos e lágrimas se confundem. O amor quando invade, deixa cores alegres e tristes paisagens… Miró da Muribeca, para a Rádio Frei Caneca”.
Miró da Muribeca.
Em seguida dessa frase, Janaína homenageia Miró dedicando a canção “Azul Claro”, da cantora e compositora recifense Isaar, muito influenciada pela poesia onírica e, muitas vezes, espaciais do poeta homenageado. Logo após esta canção, outra conterrânea, tocada por Miró, faz presença com sua música no programa, sendo esta Karina Buhr, interpretando sua canção “O Pé”.
O importante de mencionar essas músicas não é apenas o fato delas integrarem a programação do Relicário, mas também como a poética de seus lirismos conversam com a montagem dos versos e paisagens criadas por Miró. Em se tratando de um programa que espalha arte e poesia na rádio pública do Recife, tudo que integra a sua programação merece se interligar, visto que, inclusive, música e poesia andam sempre de mãos dadas.
JOÃO FLÁVIO CORDEIRO DA SILVA, O POETA MIRÓ
“Nosso homenageado é João Flávio Cordeiro da Silva, o poeta Miró, nascido em Recife, no ano de 1962. João ganhou o apelido “Miró” jogando futebol, sendo comparado ao jogador do Santa Cruz, Mirobaldo. Foi jogando bola que Miró conheceu o amigo Maurício Silva, que o presenteou com um livro e incentivou o poeta a dar os seus primeiros passos na escrita. Por isso, Miró atribui ao amigo a responsabilidade por ter se tornado o que é hoje”.
Janaína Serra
Ao dar essa breve introdução, da construção de João Flávio a Miró da Muribeca, Janaína dá início aos áudios das homenagens ao poeta. Pessoas importantes da cena cultural do Recife prestam reconhecimento à figura de Miró, declamando versos que, de alguma forma, as tocaram profundamente. A primeira a homenagear o bardo recifense é a escritora, atriz e professora Odailta Alves, que tem cinco livros publicados, dentre eles contos e poemas. A poesia escolhida e interpretada por Odailta foi “Choveu”.
“(...)Ontem, fui bem louco; hoje, fujo da chuva, abrigo meus olhos no espaço cinzento. Metais, copos de vidro… Lá fora, a água mergulha nos homens. Parando os passos, a cabeça continua andando. Meio dia: hora sagrada. Os pés, os braços… Tudo jogado na mesa da imaginação.”
Trecho de “Choveu”, Miró da Muribeca.
Após a homenagem de Odailta, quem resolve separar um texto do poeta para ler é a própria Janaína, que pega emprestado um poema direto do livro “Miró Até Agora”, coletânea lançada pela CEPE em 2018.
“(...)Vou encontrando meus pedaços pouco a pouco; agora sei me equilibrar nos fios da vida. Já não fico tremendo por qualquer sentimento… Pelo contrário! Me alegro até quando vejo alguém aguando as plantas.”
Trecho de “Balada”, Miró da Muribeca.
As homenagens seguem com o Poeta Malungo, ativo desde os anos 80 e um forte adepto da poesia marginal. Para tal, a declamação de Malungo é voltada para o lado urbano e violento de Miró, contextualizando a denúncia e a vida efervescente da cidade do Recife.
“Quatro horas e um minuto. Quatro horas, quatro ônibus levando vinte e quatro pessoas tristonhas e solitárias. Quatro horas e um minuto, acendi o cigarro e a cidade pegou fogo! Cinco horas, cinco soldados espancando cinco pivetes sem pai e órfãos de pão. Seis horas, o Recife reza e eu vou voando para ver Maria.”
Poema do livro “Ilusão de Ética”, Miró da Muribeca.
A programação seguiu com a música “Tubarão de Bacia”, composição de Jorge DuPeixe para o filme Febre do Rato, que tem uma narrativa baseada na poesia marginal de rua, falando de um poeta ativista, que ocupa os locais públicos da cidade para propagar seu lirismo. E aí, isso te lembra alguém?
Após a música, Janaína aproveita para exemplificar algumas das principais temáticas presentes na poesia de Miró da Muribeca, sendo a mais forte delas a invisibilidade. Os fatores invisíveis nos quais Miró se debruça são aqueles que nos estapeiam na cara todos os dias: a violência, a pobreza e a escatologia da fome. São fantasmas que assombram a cidade do Recife 24 horas por dia, observados por olhos extremamente abertos. Este era o caso de Miró, um cronista dos amores urbanos de uma cidade necessitada de afeto.
Seguindo com as homenagens, quem é chamado para declamar mais versos é Demir Da Hora, líder do movimento negro unificado e vocalista do grupo Favela Reggae, além de ser o diretor de palco da Terça Negra.
“Nada consta. Tudo que encontraram, não havia vestígios, nem sangue, nem nada. Não havia marca de nada nos lençóis, nem pólvora e nem punhal. Nús na cama e o sol na janela como testemunha… O amor é um crime perfeito"
Poema do livro “Miró até Agora”, Miró da Muribeca
Após esta lírica amorosa, quem teve a fala e a poesia é Roger de Renor, produtor cultural, co-criador do Som na Rural e agitador urbano. Eis sua homenagem à Miró da Muribeca:
“Ela estava, talvez, no quarto andar, no edifício em frente ao Bar Central. A cada nesga de vento, seu vestido mostrava suas coxas brancas, por trás da vidraça… acho que ela, talvez, fizesse isso de propósito. Falo “talvez” quando se bebe alguma coisa que não se tenha certeza… Ficou por trás da cortina disfarçando uma nudez Hitchcock. Orei a todos os deuses que nem um poeta aparecesse e que eu desvendasse sozinho a presença dela, e também porque não aguento mais dois poetas do meu lado (...), ainda mais no Bar Central. Fui perder tempo com isso e quando olhei nem a janela tava lá.
“Quase Crônico”, Miró da Muribeca
Cada rua, esquina, casebre ou avenida da cidade tem um rastro de Miró. Esse homem, que se fez bardo para entrar na história do Recife, marcou uma geração de entusiastas da cultura que, por sua causa, observam a metrópole de forma aguçada, esmiuçando o cotidiano na arte que mais sabem fazer, sendo poesia ou não. O que Miró nos dizia, no entanto, é que tudo ao nosso redor é pano para um bom poema, podendo, este “tudo”, ir do episódio mais brutal do cotidiano do centro da cidade à mais calorosa transa de um apartamento arejado. O que não falta nesta vida, portanto, é o sentimento.
Descanse em paz, poeta.
Ficou a fim de escutar a entrevista na íntegra? Clica aqui pra conferir. Lembrando que o #TBT é uma coluna em que, toda quinta-feira, vamos relembrar entrevistas e programas massas e importantes que já rolaram na programação da rádio pública do Recife.
Todas as entrevistas ficam disponíveis na sua plataforma de streaming favorita (Spotify, Deezer, Castbox, Google Podcasts, Anchor ou Mixcloud.)
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