Devotos | Foto: Tiago Calazans
Por Johnny de Sousa
O fazer artístico só é levado à sério quando há comprovação de que o artista também é um trabalhador. É como se o mesmo precisasse provar, o tempo todo, que ganha dinheiro e colabora com a sociedade em que vive. Frente a um capitalismo exagerado, porém vestido de liberdade, pouco se sabe sobre o que corre por de trás das coxias, mesmo que seja uma grande ansiedade do indivíduo em querer, a qualquer custo, se provar como um trabalhador digno. No entanto, é aí onde mora uma das grandes resistências da arte.
Por saber das cobranças da indústria, a classe artística busca se reinventar num estilo de vida alternativo, onde não precisam de regras impostas por terceiros, se guiando pelas suas próprias vontades. Não que essa seja uma saída fácil, muito menos tranquila para aqueles que idealizam a vida do trabalhador da arte, pelo contrário! A labuta é grande, porém a satisfação é maior.
Pode-se dizer que o punk é advindo da necessidade de viver a intensidade de uma completa independência. A arte de fazer tudo por si é o que faz o punk tão poderoso, servindo de exemplo para diversas personalidades Brasil afora. No país de João Gordo - integrante da icônica banda Ratos de Porão - e Clemente Nascimento - um dos pioneiros do gênero punk e fundador da banda Inocentes, Cannibal, baixista e vocalista da Devotos, também se destaca como uma grande personalidade na história, além de ser um pilar fundamental da música periférica pernambucana.
Em julho de 2018, Manoel Constantino entrevistou - na então coluna Papo de Artista - a grande figura que é Cannibal, falando sobre a formação da banda, as suas principais iniciativas para fazer música, cenas musicais da RMR e, é claro, o cotidiano do Alto José do Pinho.
Manoel: A ideia do Papo de Artista é trazer figuras do campo da arte, da nossa cidade, que trabalham muito, seja para construir sua carreira ou divulgar seus trabalhos. Por isso que hoje eu trago aqui Cannibal, criador dos Devotos, movimentador cultural do Alto José do Pinho. Vamos começar por essa história Cannibal: como você e sua turma criaram a banda Devotos, que antigamente era Devotos do Ódio?
Cannibal: Foi em 1999… A banda começou em Fevereiro, mas o primeiro show foi em Agosto. Como, no início, ninguém sabia tocar nada, passamos esse tempo inteiro pra um evento específico, que era o Terceiro Encontro Nuclear. Esse evento acontecia todo dia 6 de Agosto, aniversário das Bombas de Hiroshima e Nagasaki, o que já fazia disso um grande evento protesto, muito influente do movimento punk daqui de Recife. Eu já integrava o movimento punk desde 1985, e foi quando meu amigo Ael, que participava da banda SS20, formatou a Devotos comigo. A ideia era fazer músicas falando sobre inconformismo, principalmente em relação ao governo frente ao Alto José do Pinho, que nos via com enorme descaso. Policiamento, segurança, energia, água…. Tudo isso era muito difícil na nossa comunidade. Ainda existem umas mazelas, porém melhorou bastante. Na época, tinha muita panfletagem, declamação de poesia, e eu resolvi fazer protesto através da música, porém sem saber muito como. Foi quando eu tava num sebo do centro da cidade, coisa que eu frequentava muito, e vi uma entrevista com o Clemente Nascimento, líder fundador da banda de punk paulista Inocentes. Quando eu li a entrevista, parecia que ele tava falando do Alto José do Pinho, véi… E quando fui procurar um disco dele, achei e botei pra ouvir, eu falei “Oxe, é por aí mesmo!”. O nosso nome, por outro lado, vem de um livro homônimo do autor José Louzeiro, cara que escreveu Pixote. “Devotos do ódio” se relaciona com os programas sensacionalistas, que, na época, eram os mais vistos na televisão. Então, como é que a pessoa consegue se sentar ao meio dia, almoçando, assistindo morte e violência policial? O ser humano é um devoto do ódio… Ele pode até não praticá-lo, mas ele quer vê-lo!
Manoel: E como a música de vocês transformou a realidade do bairro?
Cannibal: A gente fazia do nosso inconformismo algo positivo, transformador… Pois essa era nossa proposta. Há sempre algo de positivo para se mostrar dentro da comunidade, também, pois sabe-se que há esses dois lados, tanto ruim quanto bom. O problema é que quando a mídia vai mostrar algo lá dentro, sempre é voltado para a criminalidade. Através da arte, a gente consegue difundir esse conceito, pois na periferia existe uma produção cultural muito forte que se sobressai à violência. Tanto que a maioria dos grandes artistas que se vê na grande mídia recifense, ou são de comunidades, ou são influenciados por pessoas de lá. Quando a gente começou a movimentar a cena do Alto José do Pinho, transformamos um local violento em um grande berço cultural, tanto que vinha mais gente de fora ver show na comunidade do que os próprios moradores.
***
De acordo com o próprio Cannibal, são trinta anos de Devotos, juntamente com a sua relevância artística e a de outros membros da banda. Neilton, guitarrista do grupo, é outro trabalhador da arte de grande relevância, não só trabalhando como um guitarrista muito respeitado, mas como artista gráfico, assinando as capas dos Devotos e de diversos outros artistas. A banda ainda resiste contra o tempo, lançando álbuns até hoje, incluindo o mais recente “Punk Reggae”, de 2022. Devotos representa uma transformação necessária que nem sempre acontece, sendo a mudança de vida de uma comunidade subjugada e assombrada pelo fantasma do descaso. Sua importância na música pernambucana é a razão pela qual diversas comunidades se acolhem na arte, combatendo o elitismo e a violência contra o povo com cultura.
Ficou a fim de escutar a entrevista na íntegra? Clica aqui pra conferir. Lembrando que o #TBT101 é uma coluna em que, toda quinta-feira, relembramos entrevistas e programas massas e importantes que já rolaram na programação da rádio pública do Recife.
Todas as entrevistas ficam disponíveis na sua plataforma de streaming favorita (Spotify, Deezer, Castbox, Google Podcasts, Anchor ou Mixcloud.)
Compartilhe