Foto: Marcus Steinmeyer
Por Marcela Cavalcanti
Com intensidade e delicadeza, Ana Cañas fez uma releitura da obra de Belchior no disco “Ana Cañas canta Belchior”, composto por 14 faixas com visualizers dos bastidores das gravações do projeto. Durante uma entrevista para o BR-101.5, ela falou um pouco sobre o carinho e admiração pelo rapaz latino-americano e disse que sempre incluiu “Alucinação” em seus shows, mas que o mergulho na obra de Belchior começou de maneira despretensiosa, através de uma live feita durante a pandemia.
Ainda não escutasse o álbum? Se eu fosse tu, ia correndo pra plataforma de streaming mais próxima. Aqui estão alguns trechinhos da conversa (massa demais!) que rolou com Gabriele Alves:
Gabriele: Aproveitando que ano passado a gente morreu mas esse ano a gente não morre, Ana, vamos começar falando sobre essa responsabilidade grandona que é interpretar um compositor como Belchior, que já foi gravado por tanta gente. Como é que você chegou nessa decisão?
Ana: Pois é, Gabi, é uma responsabilidade imensa não só por ser o Belchior e se tratar de uma obra monumental, mas o repertório exige um mergulho metafísico nas coisas. Definitivamente cantar Belchior não é só um entretenimento, tem a poesia, tem a... Eu costumo dizer que Belchior é uma faca com o mel passado na navalha. Tem o melzinho, mas aquela faca vai sempre entrar no coração da gente, na carne. E tem essa responsabilidade também... Além da própria idiossincrasia fortíssima do Belchior, tem as outras cantoras, grandes intérpretes, que já deram voz a esse repertório, então foi uma responsa imensa, o maior desafio da minha carreira.
Mas também acho, Gabi, que não tem nada mais atual do que esse repertório, saca? E quando as pessoas me perguntam isso, eu sempre gosto de lembrar que o disco “Alucinação”, gravado em 1976, foi feito em uma moldura de ditadura militar, de AI5, então acho que a gente tem um grande paralelo desse cenário com o que a gente vive agora, de um governo de extrema direita. Esse diálogo é muito contundente, músicas escritas numa ditadura e que soam e ressoam tão ferozmente na sua lírica, no seu lirismo... Como você abriu aí o programa, ano passado a gente morreu, mas esse ano a gente tá vivo, estamos vivas, e vamos permanecer assim pra poder celebrar a vida novamente. (...)
Gabriele: O que foi que você mais aprendeu fazendo todas essas versões de Belchior?
Ana: Ai, Gabi, essa pergunta, nossa senhora!
Gabriele: É metafísica, né?
Ana: Socorro! Eu passei um ano e meio pra fazer... Desde que eu fiz a live aqui na sala da minha casa até o disco sair, que saiu semana passada, olha, eu aprendi um oceano de coisas. Porque eu comecei como intérprete na noite paulistana e só comecei como compositora alguns anos depois com o meu primeiro disco, então eu sabia que em algum momento da minha vida esse portal ia se abrir novamente, que eu ia fazer um disco como intérprete. Aconteceu de ser o Belchior por tudo isso que a gente tá falando. Eu tenho realmente um amor muito grande por ele.
Quando eu comecei a cantar Belchior nos meus shows, mesmo com o meu repertório autoral, eu dava um jeito de incluir “Alucinação”, e sempre acontecia uma coisa louca nos shows, sabe? As pessoas choravam, já fui aplaudida de pé num teatro porque eu cantei essa música do Belchior... Quando eu fiz a live foi uma chamada do universo. Eu acredito muito nessas coisas da vida, que para além da matéria existe uma cosmolinguagem, e eu recebi mensagens dos Estados Unidos, da Argentina, da Estônia, da Lituânia, do Uruguai... Para além do Brasil, foi muito louco!
As pessoas me diziam “Ana, você tem que fazer esse disco”, quando eu fiz a live, no começo da pandemia. E eu respondia “Gente, eu faço eu o disco, mas não tenho dinheiro porque eu tô sem fazer shows, então não tenho recurso”. Mas as pessoas fizeram um coletivo do amor, financiaram, fizeram uma vaquinha para que eu gravasse o disco. Aí eu falei “Cara... Eu não tenho como não fazer isso”.
Quando eu fiz a live, Gabi, eu não pensei “Ah, eu vou fazer uma live e daí vou fazer um disco, vou fazer uma turnê...”, não! Eu nem sabia onde eu tava me metendo. Nem sabia que essas canções iam me atravessar assim, que eu seria outra pessoa depois disso. Porque é o que cê falou, “O que é que você aprendeu cantando Belchior?”. Eu aprendi que a vida é imensa. Que tudo vale a pena. Que as pessoas têm suas poesias e suas subjetividades e, mais do que isso, eu aprendi que cantar é como colocar a mão dentro da caixa torácica das pessoas e segurar o coração delas. Minha vida é antes e depois desse momento.
Gabriele: (...) Uma coisa que cê falou há pouco, Ana, foi sobre essa delicadeza, a doçura de Belchior, e é uma coisa que você traz nos arranjos que você fez junto com o Fabá, né? Eu não esperava! Quando a gente pensa em Belchior, a galera vai logo pra rasgação, e é intenso... E você traz uma caminha pra sua voz. Como é que foi chegar nesse ponto?
Ana: Olha, Gabi, isso culminou com uma crise existencial pessoal minha, porque eu sempre tive um canto mais pra fora, né? Eu sempre fui uma cantora visceral, de palco e tal. O Belchior entrou na minha vida num momento onde eu entro em crise com meu próprio canto. E eu, aos 40 anos de idade, porque também foi o momento em que eu fiz 40 anos, comecei a entender que, por exemplo, o grito é muito importante, mas ele tem um momento específico pra acontecer, sabe?
Quando você grita demais, ninguém te ouve. Gritar demais é fazer silêncio. Eu pensava sempre na Cássia, que a Cássia contava uma história muito interessante. Ela dizia que o filho dela de 5 anos, o Chicão, que é muito meu amigo, já compartilhamos palco, o Chicão falou pra ela assim: “Mamãe, quando cê vai parar de gritar e começar a cantar?”. Ela fala que, nesse momento, ela grava o disco com o Nando Reis, o “(Com Você) Meu Mundo Ficaria Completo”, e a carreira dela deslancha.
Eu via os meus vídeos dos shows no YouTube e ficava um pouco tensa, falava “Cara, tô gritando muito”. E aí lembrava dessa história da Cássia e tal... Quando eu tive essa crise, o Belchior entrou pra mim, e na pandemia, lá na live, eu comecei a recolher o meu grito e a entender que é isso. Às vezes o grito exaustivo ensurdece e você passa a não ser mais ouvido. E aí juntou tudo, sabe? Eu falei “Cara, vou fazer um disco onde eu mostre o meu outro lado e onde seja possível a palavra do Belchior, o texto, a literatura, submergir de uma forma diferente”.
Porque eu não faria um disco se fosse pra fazer uma versão próxima da dele, eu não teria essa coragem... Eu acho que é muito idiossincrático, ele tem uma vivência em Sobral, Fortaleza, São Paulo, autoexílio... Ele tem uma vida muito particular, um canto nordestino. Eu sou da cidade, sou uma mulher, sou paulistana. Eu tenho uma vivência diferente, né? E por mais que eu seja uma mulher branca, cis, bissexual, magra, privilegiada, ainda sou uma mulher, ainda me coloca numa situação de opressão em relação à estrutura social, e isso nos coloca numa vulnerabilidade do canto.
Tem um amigo meu que fala: “A voz feminina é um portal para os compositores masculinos”. Eu gosto dessa expressão, porque realmente a gente tem uma vivência diferente dos homens, obviamente, por estrutura social. Eu quis trazer uma delicadeza, mas o grande desafio foi trazer o minimalismo dos arranjos, a delicadeza do canto, mas sem perder a profundidade da interpretação. Como é que eu chego nas pessoas sem gritar, mas emocionando? Tem que emocionar! Se eu cantar Belchior e não emocionar ninguém eu me aposento, desisto da carreira de cantora e vou fazer qualquer outra coisa. Na verdade eu não vou fazer nada, porque não sei fazer mais nada, né? (risos)
Foi um grande desafio, através dessa sutileza, desse minimalismo dos arranjos... Eu não queria um solo de instrumentos, eu não queria a banda arregaçando de tocar, eu queria que a palavra fosse entendida de um jeito novo.
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Quer continuar acompanhando esse bate-papo? Escute a entrevista completa aqui! O #TBT101 é uma coluna em que toda quinta-feira vamos relembrar entrevistas que já rolaram na rádio pública do Recife. Sintoniza com a gente nas estradas da cultura!
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