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#TBT101 - MUN HÁ - A PRIMEIRA DE MUITAS

02.02.23 - 14H33
A primeira de muitas

Por Johnny de Sousa

 

O desejo artístico é sempre o mais insaciável, principalmente quando se trata da necessidade de revolucionar a sua existência como um indivíduo em sociedade. Não é uma questão de vaidade, mas sim uma forma de sobrevivência, um clamor por alguma atenção diante de um mar de pessoas que lhe rejeitam. Na arte, a gente tenta buscar esse desejo fazendo algo original. Apenas sendo você mesmo e estando perto de um elemento vital para sua história, pode-se criar uma expressão artística inimaginável.

Mun Há, uma artista travesti, não-binária e anti-proibicionista, criou todo um mito diante de sua imagem, sendo a primeira cantora com tais características a aparecer dentro da cena do brega-funk, com seu álbum de estreia “Mundhana”. Seu som interplanetário, mas profundamente recifense, carrega valores e expressões fortes da metrópole pernambucana, gerando um calor único, de quem sempre deixa os seus “corres” em dia.

O #TBT101 de hoje relembra a entrevista calorosa que Gabriele Alves realizou com Mun Há em outubro de 2022, no programa BR-101.5. Neste dia, a não-binária do brega discorreu sobre sua trajetória, seus ideais e sua estética, todos estes elementos fundamentais para a grande armadura que ela veste dentro e fora dos palcos.

Gabriele Alves: Você lançou o seu primeiro álbum, o Mundhana, e já apareceu com tudo! Este foi o primeiro álbum de brega-funk da história a ser feito por uma travesti não-binária. Como é fazer história?

Mun Há: É tudo muito novo, pra mim. Sempre sonhei em trampar com música, mas nunca pensei que fosse ser dessa forma, sendo a primeira de algo. E tem uma questão aí: ser a primeira significa que nunca houveram corpos neste meio. Cadê as não-binárias, cadê as travestis, entende? O brega-funk, sendo um movimento relativamente novo, pede muito por essas pessoas dentro da cena. Então, fazer parte desse segmento da música, lançando um álbum sobre minhas questões, é um pontapé para outras travestis e não-binárias como eu se sentirem representadas, quem sabe até fazendo sua própria arte. A gente gosta da safadeza do brega, consumimos muito isso. Mas quando é uma travesti fazendo esse tipo de música, parece que existe sempre uma dificuldade de digerir. Eu estou apenas abrindo a porta para que muitas outras, como eu, possam se realizar através da própria música.

Nem sempre Mun Há foi do brega, apesar de ser esta a vertente que mais se comunica com os seus fãs. A artista, que tem origem carioca e criação pernambucana, passou por diversas fases dentro da canção, uma paixão que a acompanha desde a infância. O brega sempre esteve ali, desde a sua infância em Orobó, interior de Pernambuco, até os ambientes festivos de Recife, os quais vive referenciando em suas músicas.

Os ideais da arte de Mun Há, no entanto, fazem a sua música e contribuem para a evolução artística da cantora, criando uma mitologia pessoal, uma história de vida para compartilhar com os amantes de sua arte. Pode-se ver muito isso na capa do seu álbum, que representa o grande sistema solar de uma artista jogada no universo.

Gabriele: Eu estava prestando atenção nessa sua capa, que tem uma arte maravilhosa, com diversos elementos girando ao seu redor. Conta um pouco de onde vieram esses pequenos detalhes que contribuíram para a criação dela.

Mun Há: Quem fez a arte foi uma grafiteira chamada TAB, que tem sido muito atuante nas ruas de Recife. Me conectei com ela um ano antes de lançar o disco, já sentindo que a arte dela seria perfeita pra passar essa identidade de “inumana”. O nome do álbum, Mundhana, é uma brincadeira com o meu nome, assim como também é uma característica minha de não seguir um fluxo normativo. O objetivo é referenciar pessoas que estão fora desse fluxo da igreja, por exemplo. Já fui adventista do sétimo dia e, assim como muitos artistas, comecei a cantar na igreja. Me tornei mundana a partir do momento que deixei de frequentar esses espaços, criando um universo pessoal meu.

Se voltando para os elementos menos biográficos, entraram as referências políticas e pessoais de Mun Há. O louvor à sua quebrada, às pessoas que lhe acompanham e também aos seus diversos locais de origem, fizeram Mun Há perceber o quanto é singular sua existência, afirmando sua identificação como mundana, de fato. 

Mun Há: Outros elementos surgiram quando estava criando o nome e o conceito do álbum. Eu sou anti-proibicionista, então quis trazer o símbolo da cannabis, seja por luta ou por representação. Tem umas referências mais brincalhonas, como a ratinha segurando o isqueiro, homenageando todas as ratas da quebrada que sem querer acabam levando os isqueiros dos outros (risos). Além de coisas que representam minha origem, com referências do Rio no bairro da Várzea, tem a minha figura, bem no centro do disco, com meus cabelos, minhas tatuagens, acompanhada dessa caracterização, assim, bem fora desse mundo.

Gabriele pontuou algo interessante nesse momento da entrevista: a transformação da música acontece muitas vezes dentro de uma apresentação ao vivo. Quando a performance é ainda mais forte do que a canção, o artista surpreende, muito por transcender a arte de uma gravação musical. Esse é o caso de Mun Há, uma artista profundamente performática e que busca inovar na aparência toda vez que sobe ao palco.

Mun Há: Essa questão do visual é bem interessante. As pessoas estão acostumadas a verem, no máximo, uma maquiagem, uma roupa minimamente mais chamativa, mas nunca algo mais intenso. Essa quebra no visual é algo que colabora com muita força para a música, e é importante por naturalizar, além de outros corpos, a estranheza, a não-normatividade, a monstruosidade. Ou seja, algo muito novo! Eu posso tá cantando brega-funk, mas estou usando sempre algo diferente, como lentes pretas, um chifre, uma maquiagem pesada. Eu acho que isso estimula a mente do público e é isso que eu quero fazer. Imaginem, criem coisas! Eu gosto disso!
 

De forma completamente alienígena, Mun Há se teleporta entre os mais variados territórios da arte. Dominando a monstruosidade do hyper-pop, nossa artista mundana faz do brega-funk um meio desafiador, questionando padrões e quebrando as regras de uma indústria musical que busca o alternativo, mas peca por cair na hipocrisia das normas. Diante deste enorme quadro de regras, é importante que venha alguém como Mun Há para dar um basta em modelos ultrapassados, criados por indivíduos masculinos, brancos e cisgêneros, que pensaram inovar através de seus privilégios, porém, só buscavam o sentimento de superioridade. Questionar essas hierarquias através do monstro interno é um dos primeiros passos para se tornar “Mundhana”.

Ficou a fim de escutar a entrevista na íntegra? Clica aqui pra conferir. Lembrando que o #TBT101 é uma coluna em que, toda quinta-feira, vamos relembrar entrevistas massas e importantes que já rolaram na rádio pública do Recife. 

Todas as  entrevistas da Frei Caneca FM estão disponíveis na sua plataforma de streaming favorita (Spotify, Deezer, Castbox, Google Podcasts, Anchor ou Mixcloud.).

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